quarta-feira, 15 de junho de 2016

Lisboa como lugar mítico no filme “Saraba natsu no hikari” ("Adeus ao verão da Luz") de Yoshishige Yoshida (1968)


Falsamente apresentado como um road-movie, o filme não segue, contudo, a deriva de uma viagem. O seu périplo salta entre lugares para estar neles, sem se preocupar em viajar entre eles. Embora próximo de “Viaggio in Italia” (1954) de Roberto Rossellini, no sentido em que a viagem acompanha o caso amoroso de um casal — neste caso num casal em inicio de relação; no filme italiano num casal em crise de uma antiga relação, substituindo-se assim os lugares de Itália de Rossellini por lugares da Europa (embora Roma seja a cidade final da viagem do filme de Yoshida).

O filme centra-se em Makoto Kawamura (Tadashi Yokouchi), professor universitário de arquitectura que viaja na Europa em busca do edifício que inspira uma Igreja que existia em Nagasaki, destruída pelas perseguições cristãs no Japão, e que descobrira num desenho que o acompanha; e Naoko Toba (Mariko Okada), uma japonesa casada com um francês e morada em Paris, que se dedica à importação de mobiliário e objectos de arte, e que teve familiares mortos em Nagasaki.


Esta cidade japonesa, simultaneamente referida e ausente, assume relevância simbólica no filme: primeiro como o primeiro lugar de fixação dos portugueses, com feitoria comercial, portanto da primeira chegada da cultura ocidental; depois como símbolo de destruição da bomba atómica no final da 2ª Guerra, portanto, um símbolo trágico dessa ligação do Ocidente com o Japão.

Nagasaki intersecta as respectivas ‘mnemose’ [memória] e ‘amnese’ das duas personagens, sendo o lugar ausente que anima o encontro amoroso em diferentes lugares da Europa: Kawamura veio para a Europa para recuperar uma memória das origens do contacto (a Igreja); Naoko para esquecer uma recente e trágica da morte da família com a bomba. Contudo, o amor deste encontro, marca o retorno dessa ligação às raízes que Naoko procurava esquecer.


Na primeira cena do filme observamos Kawamura a entrar na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos pelo portal Sul, passando depois ao Claustro, a que se segue a Torre dos Jerónimos.

A passagem por estes lugares históricos são acompanhados por reflexões da personagem em voz off (dominante no filme) sobre a epopeia dos portugueses para Oriente, a sua chegada ao Japão, e como fundadores da feitoria de Nagasaki.


O encontro com Naoko dá-se em cima do mapa do mundo no mosaico do chão do Padrão dos Descobrimentos, enquanto Kawamura aponta no mapa uma data marcante da relação dos portugueses com o Japão. Segue-se o ruído da baixa de Lisboa, a subida para o Castelo, ou Alfama.

Yoshida explora o passeio através de enquadramentos de rigorosa disposição formal, impondo simetrias e cruzamentos inesperados as suas personagens, sempre peças de um jogo compositivo. Segue-se a Praia do Guincho, na proximidade do referido Cabo da Roca, como o lugar mais ocidental do continente Europeu. Lisboa era esse símbolo, o mais antigo e primeiro do contacto com o Japão, e o mais distante na sua ocidentalidade extrema, em referência a essa Europa. Era o primeiro marco ou cais do périplo de uma busca a iniciar.


O filme acompanha o diálogo das personagens em Óbidos e Nazaré (no Sitio da Nazaré) completando-se ai a passagem do casal por Portugal. Seguiu-se Espanha, Paris, Mont-Saint-Michel, Estocolmo, Dinamarca, Amesterdão, de novo Paris e finalmente Roma.

Lisboa foi esse cais inicial, na geografia e na historia, simbolicamente referido na evocação de Nagasaki como cidade ausente, oferecida nas memorias perdidas ou recalcadas das duas personagens.

Texto: Tese de Fernando Rosa Dias: "Cidade Branca - Lisboa no ecrã"
Imagens: Lisboa no Cinema (Lisboacinema.blogspot.pt)

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