quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Personagens e amigos portugueses na obra de Jorge Amado


Uma das minhas diversões durante o trabalho duro e difícil do romance é colocar nomes de amigos nos personagens: a um frade cachopeiro e mandrião baptizei com o nome de Nuno Lima de Carvalho [jornalista português], todo o contrário: burro-de-carga no trabalho, não respeita domingo nem feriado, ex-seminarista casto permanece pudico e só reza missa no altar de Santa Clarinda, esposa e mártir.

Natário da Fonseca, jagunço e capitão da Guarda Nacional, herdou o prenome de um pasteleiro, notabilidade de Viana do Castelo, siô Manuel Natário, o dos pães-de-ló.


Manuel Natário

Manuel Natário, o dono da pastelaria, diz-nos que "até gostou" de ser jagunço no livro: "Ele fez aquilo com muito gosto". E porque a amizade entre os dois não permitia melindres. Nem amuos. Mas o verdadeiro retrato do amigo minhoto, deixou-o Amado na dedicatória que lhe fez em Tocaia Grande: "Manuel Natário, capitão de doces e salgados, comandante do pão-de-ló, mestre do bem-comer".

"[Jorge Amado] viu na Senhora d'Agonia a sua Iemanjá. E Viana fez de Jorge Amado e sua mulher seus cidadãos honorários. Mas a peregrinação também se fez ao Santuário de Manuelzinho Natário. Zélia e Jorge Amado não se rogaram. Ficaram mesmo fregueses. Fez mais.

Passou à posteridade chamando-o para a personagem mais importante de seu último romance, "Tocaia Grande", na figura destemida de Capitão Natário. E não se ficou por aqui. Com os paladares avivados, quis que o Presidente Sarney e D. Marly no Palácio da Alvorada, provassem deste pão-de-ló de Viana. E foram muitos pãos-de-ló que emigraram até Brasília pela mão de Lima de Carvalho e Jorge Amado"


Nuno Lima de Carvalho

Nuno Lima de Carvalho conta à Antena1 que conheceu o escritor em 1980 e acompanhou-o nas suas viagens por Portugal. Este galerista português inspirou a personagem de um frade que namorava com uma freira às escondidas. Apareço como um frade cachopeiro, Frei Nuno de Santa Maria, que ia celebrar missa todos os dias a um Convento, onde tinha lá uma freirinha que se entretinha depois com ele atrás da torre da igreja.

Conheceu Jorge Amado na casa de José Franco, artista popular de Mafra.


José Franco

Segundo Zélia Gattai na sua autobiografia, Jorge Amado conheceu José Franco, quando visitou a aldeia típica na companhia de Beatriz Costa e Francisco Lyon de Castro nos fins dos anos 60, tornando-se grandes amigos a partir daí. Jorge Amado visitava José Franco, a quem chamava queridinho, sempre que se deslocava a Portugal e a sua casa em Salvador é decorada com peças do artista português.


Álvaro Salema

Em "Navegação de Cabotagem" (apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei", Jorge Amado faz referência a muitos amigos portugueses, como Álvaro Salema que descreve como «O homem mais modesto, o mais tímido, o mais corajoso, o mais leal, o mais digno, Álvaro Salema. Em silêncio se retirou de cena, pouco antes do final da tragicomédia, personificava a decência, já não tinha lugar no palco.»

Álvaro Salema publicou em 1982 o livro "Jorge Amado: o homem e a obra presença em Portugal". Nesta obra é abordado o que representou a obra de Jorge Amado em Portugal, antes e depois de ser considerado um escritor "maldito", excomungado, proibido, e a influência que ela exerceu sobre várias gerações. E é acrescentado também o que é o portuguesismo de Jorge Amado no sentido da sua ligação a Portugal, do que ele já conhece do país e da sua gente.


Arroz doce

A receita de arroz doce utilizada por Zélia Gattai foi-lhe dada por Elisa Salema, esposa do escritor português Álvaro Salema. Segundo o livro organizado por Paloma Jorge Amado, come-se arroz-doce nas obras “Cacau“, “Jubiabá“, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “O Sumiço da Santa“.


Lisboa - Luanda - Bahia

Em Navegação de Cabotagem, quando evoca a sua ida a Angola a convite de Agostinho Neto, em 1979, diz que ao percorrer as ruas de Luanda ou de Lisboa não se sente no estrangeiro – «Luanda, uma das faces da Bahia, a outra é Lisboa». 

Jorge Amado tinha com Portugal uma relação especial. Amigos, muitos – Ferreira de Castro, Álvaro Salema, o Chico, (Francisco Lyon de Castro, o editor que mais obras suas publicou, dono de Publicações Europa-América) Beatriz Costa, Fernando Namora, Mário Soares, Ramalho Eanes, Mimi, a dona do modesto restaurante do Parque Mayer, que Jorge preferia a estabelecimentos de luxo. 


Sangue Português misturado com o brasileiro

E, se nos romances amadianos quase não há referências a Portugal, a situações aí passadas e a personagens portuguesas, a justificação pode ser encontrada na dedicação quase exclusiva do escritor ao universo baiano da região cacaueira e de Salvador, onde, como ele mesmo explica, na época em que se passam as suas histórias, os portugueses não existiam como imigrantes, embora houvesse sangue português misturado com o brasileiro:

"Em Ilhéus o sangue português estava no sangue sergipano, aqui na Bahia no sangue dos mulatos, da gente da Bahia, do povo. Ao lado disso, havia os árabes [...], imigrantes que tinham chegado mais tarde. A Bahia foi a capital do Brasil, uma cidade portuguesa. Os portugueses iam para lá até uma certa época, depois isso deixou de acontecer, os portugueses chegavam às centenas de milhares para o Rio e São Paulo. Mas não para a Bahia. [...] Há na Bahia mil e poucos portugueses, todos ricos – ricos, quer dizer, não «trabalhadores», são pessoas com comodidades(AMADO, 1992, p. 161-162).


Referência a "O Crime do Padre Amaro" em "Gabriela, Cravo e Canela" (1958)

A personagem Malvina luta para escapar do futuro que lhe é reservado. Um futuro que inclui casamento e filhos e não uma faculdade e trabalho, como gostaria. Malvina quer ser livre. A jovem conquista um grau de autonomia incomum ao seu ambiente através da leitura. Compreendemos aqui a leitura como um ato de transgressão das normas, já que ela lê livros considerados proibidos para mulheres.

Entre as obras lidas por Malvina e tidas como “impróprias” pelos frequentadores da Papelaria Modelo, ponto de encontro dos intelectuais de Ilhéus, está "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queirós.

A leitura, apesar de emancipadora, é vista como “degradante”, pela sociedade patriarcalista da cidade onde transcorre o romance. O acto de ler é, para Malvina, libertador e, ao mesmo tempo, transgressor. (...)


Uma passagem do livro sintetiza nossa ideia da emancipação feminina de Malvina através da leitura. Quando a personagem e suas colegas entram na Papelaria Modelo, Malvina escolhe folhear os títulos de Aluísio de Azevedo e Eça de Queirós, enquanto as demais buscam os livros da Biblioteca das Moças.

Uma colega diz a Malvina que na sua casa tem "O Crime do Padre Amaro" e que, ao tentar lê-lo, seu irmão “disse que não era leitura pra moça”. Malvina fica revoltada e revida: “Por que ele pode ler e você não?”. Malvina compra o romance e desencadeia duas reacções, uma instantânea e outra posterior. A primeira são os comentários dos frequentadores da loja. “Essas moças de hoje... até livro imoral elas compram”, diz um homem. A segunda reacção veio do pai de Malvina, o coronel Melk. O pai vai até a loja e pede ao livreiro João Fulgêncio que não venda mais livros para Malvina que não sejam “de colégio” porque “os outros não servem para nada, só servem para desencaminhar”. Como punição pela audácia, Malvina recebe uma sessão de espancamento com rebenque do coronel."


"Os Velhos Marinheiros ou os Capitães de Longo Curso" (1961)

"Vindo ao mundo na cidade da Bahia em 1868 e órfão aos cinco anos, Vasco Moscoso de Aragão foi criado pelo avô materno, o rico comerciante de origem lusa José Moscoso, que o retira da escola com a idade de apenas dez anos e o mete na casa comercial. Todavia, o pupilo não nascera para o comércio (...)

O actor português Joaquim de Almeida interpretou o "Velho Marinheiro" no filme "O Duelo", dirigido em 2015 pelo realizador brasileiro Marcos Jorge.


"Teresa Baptista Cansada de Guerra" (1972)

Uma das personagens, Joana das Folhas, Joana França, era uma negra idosa, viúva de um português [Manuel França] sítio herdado do compadre Antonio Minhoto.


"Farda, Fardão, Camisola de Dormir" (1979)

Jorge Amado escolheu uma militante comunista portuguesa para ser uma das protagonistas femininas de "Farda, Fardão, Camisola de Dormir", um de seus romances menos conhecidos e dos poucos cuja história não se passa na Bahia.

Maria Manuela é uma militante, comunista, esposa do Conselheiro da Embaixada de Portugal (em Paris) e amante do poeta romântico e boémio Antônio Bruno que morre na capital francesa, abrindo-se uma vaga na Academia Brasileira de Letras, facto que vai desencadear uma verdadeira guerra nos meios intelectuais do Rio de Janeiro;

Misturando personagens fictícios a figuras históricas, Jorge Amado reconstitui de retornar à terra natal. É hora, pois, de Serginho dar as costas à sua Cataguases, cortada pelo rio Pomba, em cujas águas o autor parece ter se inspirado para construir uma prosa de fluxo forte intercalado por rápidos e iluminadores flashbacks. Em Portugal, o passar dos anos será demarcado com extrema subtileza pelo afloramento de uma plêiade de idiomatismos lusos na prosa interiorana de Serginho, revelando a mão segura e inventiva de um dos mais bem-sucedidos autores brasileiros contemporâneos.


"Tocaia Grande" (1984)

Jorge Amado esteve ligado por laços afectivos a Viana do Castelo, tendo granjeado muitos amigos – sendo de destacar Manuel Natário, dono da pastelaria "Natário" em Viana do Castelo, e Nuno Lima de Carvalho, Director da Galeria de Arte do Casino Estoril (mas natural de uma freguesia do concelho de Viana do Castelo), imortalizados em “Tocaia Grande” como “Capitão Natário da Fonseca” e “Frei Nuno”, respectivamente.

Sinopse: "Esta é a história da fundação de uma cidade no sul da Bahia numa época em que as plantações de cacau eram adubadas com sangue. A disputa pela terra e pelo domínio político entre os coronéis Boaventura Amaral e Elias Daltro.

Tudo começa quando Natário da Fonseca quer deixar de ser um simples jagunço para virar coronel. Natário se destaca comandando o “grupo” de Boaventura. Com esse destaque, ele ganha a patente de Capitão e, com isso, algumas terras. Natário começa a plantar cacau e incentiva a fundação de uma nova cidade cujo nome será Tocaia Grande, palco de conflitos com os coronéis de Itabuna que querem continuar dominando a região e não admitem a ascenção de Natário."


"O Sumiço da Santa" (1988)

Por causa de "O Sumiço da Santa" voltam nomes de amigos e o gosto de Jorge Amado por integrá-los na ficção, personagens dos seus romances. Neste livro podemos "ler" Luiz Forjaz Trigueiros, António Alçada Baptista, José Carlos Vasconcelos, Fernando Assis Pacheco. É uma forma de homenagear os seus amigos.

"Para receber a imagem preciosa, o director escolhera Edimilson Vaz, jovem e talentoso etnólogo, auxiliar de confiança. Ele próprio não pudera ir, naquele preciso momento presidia concorrida entrevista colectiva com a imprensa falada e escrita (...) presentes jornalistas da Bahia, os correspondentes de importantes órgãos do Sul do país e, para culminar, o enviado de uma cadeia de jornais portugueses, um certo Fernando Assis Pacheco.  


"Navegação de Cabotagem" (1992)

Onde mais e melhor se percebe a importância que Portugal tinha para o escritor e o homem Jorge Amado é no seu livro de memórias, posto que Navegação de Cabotagem está repleto de pequenos fragmentos sobre o país e os seus habitantes.

No conjunto de apontamentos fragmentários e não ordenados cronologicamente que formam essa obra, são mencionados acontecimentos importantes ou comezinhos da história pessoal e profissional do criador de Gabriela, bem como as suas relações afectivas, intelectuais, ideológicas e literárias com os portugueses e Portugal.

Fontes/Mais informações: Jorge Amado, “Navegação de Cabotagem, Apontamentos para um livro de Memórias que jamais escreverei"/  Diário do Minho / RTP / Público / DN / Colóquio 100 anos de Jorge Amado / Arroz doce / Jorge Trabulo Marques / Entrevista a Nuno Lima de Carvalho / A viagem dos Argonautas / Mosqueteiras Literáris (sobre "O Crime do Padre Amaro") Alma Lusa (sobre "O Duelo") / Muxicongo / Estrada dos Livros e Livros e Raquetes (sobre "Farda, Fardão ...")

1 comentário:

gps disse...

http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=578180&tm=4&layout=123&visual=61

Nuno Lima de Carvalho conta à Antena1 que conheceu o escritor em 1980 e acompanhou-o nas suas viagens por Portugal. Este galerista português inspirou a personagem de um frade que namorava com uma freira às escondidas.

O dono de uma pastelaria de Viana do Castelo onde Jorge Amado comprou pão de ló inspirou a personagem capitão Natário. Por isso, as festas da Senhora da Agonia vão homenagear o romancista e a autarquia vai dar o seu nome a uma rua e a uma ala da biblioteca da cidade.